O ato de trançar cabelos carrega
mais do que significado estético. Sobretudo quando falamos de mulheres negras e
cabelos crespos. Na tradição africana, o modo de trançar o cabelo indicava
desde status social a interesse em alguém de outro sexo. Em uma sociedade em
que muito da cultura negra se perdeu desde a escravidão, cabelos trançados
significam aceitação e resistência.
Quando uma mulher negra trança o cabelo de outra mulher negra, mais do
que o belo desenho na cabeça, passa-se amor, valores culturais e laços
fortes. Cada vez que uma mulher negra
trança outra mulher negra, reforça-se a identidade de uma etnia.
Foram as tranças que
marcaram a vida de Esther Uduji, 41 anos.
Ela nasceu na Nigéria, na
cidade de Lagos, que foi capital do país até 1991 e é a segunda maior cidade do
continente africano atrás de Cairo, no Egito. Perguntada sobre sua infância,
ela a classifica como “normal”. Não tinha muitos luxos, mas seus pais proviam a
ela, caçula de quatro irmãos, o necessário para a sobrevivência da família. Com
a criatividade e imaginação aguçadas desde criança, Esther, que gostava de
brincar no quintal e não tinha bonecas, tinha o costume de trançar o mato alto
que encontrava. Passava horas nesta brincadeira. A avó da pequena dizia que ela
ainda viveria de trançar cabelos, mas Esther ria dizendo que aquilo “não era
para ela”.
Casou-se nova com um
engenheiro civil também da cidade de Lagos, amigo de sua família. Grávida,
mudou-se para o Brasil em 1997 com o marido que veio ao país a trabalho. Aqui,
um ano depois, deu à luz sua filha mais velha, Hellen, sua primeira
boneca. Apesar de achar lindo o país
tropical, Esther, que conseguiu se acostumar mais facilmente à cultura
brasileira, teve mais dificuldades com o idioma tupiniquim.
Em Lagos fala-se inglês. Esther, depois de
vinte anos de Brasil já fala português fluentemente, mas ainda com sotaque
levemente carregado, diz que o português é “uma das línguas mais difíceis” de
se falar. Ela garante que aprendeu muitas coisas com a vivência da filha, ainda
pequena, nos primeiros anos escolares.
Apesar da boa relação com o
companheiro, o casamento com o engenheiro chegou ao fim. Antes do término,
Esther teve mais duas bonecas negras: Noreen e Jay, de 15 e 12 anos,
respectivamente.
Como nunca havia trabalhado
no Brasil desde que se casara, e em meio à dificuldade financeira para cuidar
das três meninas, Esther, que trançava mato na infância e, anos mais tarde, os
cabelos de suas meninas, decidiu enfim fazer o que mais sabia fazer de melhor
para ganhar dinheiro. Com as mãos firmes
e “abençoadas”, como enaltecem as clientes, Esther começou a trançar cabelos no
centro de São Paulo, na Galeria do Reggae, onde há grande concentração de
salões que cuidam de cabelos Afros.
No início dos anos 2000
ainda vivíamos na ditadura da chapinha, em que ainda não havia o boom do cabelo natural que existe
hoje, passados quase quinze anos. Para o cabelo afro ser aceito na sociedade
usava-se mão de alisamentos, progressivas ou alongamentos de cabelos, sempre
lisos. As tranças eram sim feitas, mas em número menor. Ela não sabe precisar
quando exatamente as box braids, como são chamadas as tranças soltas, viraram
febre. O que Esther diz é que “uma mulher incentiva a outra”. Assim que ela
sempre agiu com suas três meninas, que sempre eram sensação na escola pelos
cabelos muito bem trançados em diversos formatos, estilos e comprimentos.
Hellen, a mais velha, conta
que a mãe sempre a incentivou a afirmar seus cabelos trançados. Quando algum
colega da escola falava que ela e as irmãs “queriam se aparecer” (sic), por
força do incentivo e ensinamentos da mãe, as irmãs Uduji resistiam e ostentavam
ainda mais suas tranças. As belas adolescentes são a principal vitrine do
trabalho da mãe. “Quem não gostaria de ter uma mãe trancista?! É simplesmente
maravilhoso!”, diz a mais Noreen, a filha do meio.
Esther cria três mulheres
resistentes e cientes de seus papéis enquanto mulheres negras em uma sociedade
que ainda caminha rumo à igualdade. Enquanto trança os cabelos das filhas,
Esther as empodera e o empoderamento – palavra que dizem estar “na moda” –
importa demais e é importante que seja passado às meninas pretas. O efeito é
dominó: quanto mais o ato de empoderar é espalhado, mais e mais pessoas serão
atingidas. Trançar, para Esther, é uma corrente do bem.
Voltando à época da Galeria,
Esther fez o mesmo com suas clientes, que no boca a boca foram divulgando seu trabalho.
Com o crescimento da cartela de clientes (algumas que viraram amigas da
simpática trancista), Esther decidiu trabalhar por conta, atendendo em casa e não
nos salões, onde sempre é mais difícil lucrar e conseguir clientes.
Seu diferencial, além das
abençoadas mãos, está na agilidade com que trança, mérito das horas que passava
brincando com o mato de casa quando criança e da criatividade de fazer modelos
e técnicas novas, além de usar cabelos diferenciados para seus trabalhos.
Entre as mulheres que trançam nos últimos três
anos, há a preferência por um tipo específico de cabelo, importado, chamado
Xpression. Trata-se de um tipo de fibra que se assemelha ao cabelo natural pela
leveza e textura mais fosca e não “plastificada”, defeito de muitos cabelos
Kanekalon mais baratos. Esther, que sempre foi muito criativa e antenada,
começou a comprar deste tipo de cabelo e a usar em suas clientes, incentivando,
inclusive, comprimentos cada vez maiores de trança, além de diferentes cores e
tipos de tranças como o twist (trança de duas pernas) e a trança californiana (em
que se começa com uma cor e as pontas são coloridas). Estamos falando agora em uma época mais
recente, cerca de cinco anos atrás, em que, com a ajuda da internet já se fala muito mais de cabelo afro por meio
de sites e principalmente do Youtube. O surgimento de diversos canais de
blogueiras negras como Gabi do canal DePretas, Xan Ravelli, Magá Moura, Maraisa
Fidelis e Nátali Neri, para citar alguns exemplos, acabou por impulsionar mesmo
que indiretamente o trabalho de Esther, justamente pelo efeito dominó que é o
empoderamento das mulheres negras. Com a ajuda da internet muitas meninas e mulheres
que antes não tinham referencial de beleza, passaram a amar seus cabelos
naturais e fazer transição capilar (quando se
abandona o processo de química). As tranças, além de um estilo de vida,
também auxiliam essas mulheres em busca de identidade capilar.
Esther, cada dia mais
brasileira, sente-se feliz e realizada por poder tocar a educação de suas
filhas fazendo tranças. Hellen, Noreen e Jay, por sua vez, seguem a lógica do
efeito dominó do empoderamento inspirando amigas e clientes da mãe, já que são
sua maior vitrine.
Para além de seu sustento, Esther
se orgulha por elevar a autoestima das meninas, mulheres e senhoras que passam
quase que diariamente por sua casa, provando ao pé da letra que trançar
significa tecer histórias com fios de cabelos.