quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Tecendo histórias com mãos abençoadas


O ato de trançar cabelos carrega mais do que significado estético. Sobretudo quando falamos de mulheres negras e cabelos crespos. Na tradição africana, o modo de trançar o cabelo indicava desde status social a interesse em alguém de outro sexo. Em uma sociedade em que muito da cultura negra se perdeu desde a escravidão, cabelos trançados significam aceitação e resistência.  Quando uma mulher negra trança o cabelo de outra mulher negra, mais do que o belo desenho na cabeça, passa-se amor, valores culturais e laços fortes.  Cada vez que uma mulher negra trança outra mulher negra, reforça-se a identidade de uma etnia.
Foram as tranças que marcaram a vida de Esther Uduji, 41 anos.
Ela nasceu na Nigéria, na cidade de Lagos, que foi capital do país até 1991 e é a segunda maior cidade do continente africano atrás de Cairo, no Egito. Perguntada sobre sua infância, ela a classifica como “normal”. Não tinha muitos luxos, mas seus pais proviam a ela, caçula de quatro irmãos, o necessário para a sobrevivência da família. Com a criatividade e imaginação aguçadas desde criança, Esther, que gostava de brincar no quintal e não tinha bonecas, tinha o costume de trançar o mato alto que encontrava. Passava horas nesta brincadeira. A avó da pequena dizia que ela ainda viveria de trançar cabelos, mas Esther ria dizendo que aquilo “não era para ela”.
Casou-se nova com um engenheiro civil também da cidade de Lagos, amigo de sua família. Grávida, mudou-se para o Brasil em 1997 com o marido que veio ao país a trabalho. Aqui, um ano depois, deu à luz sua filha mais velha, Hellen, sua primeira boneca.  Apesar de achar lindo o país tropical, Esther, que conseguiu se acostumar mais facilmente à cultura brasileira, teve mais dificuldades com o idioma tupiniquim.
 Em Lagos fala-se inglês. Esther, depois de vinte anos de Brasil já fala português fluentemente, mas ainda com sotaque levemente carregado, diz que o português é “uma das línguas mais difíceis” de se falar. Ela garante que aprendeu muitas coisas com a vivência da filha, ainda pequena, nos primeiros anos escolares.
Apesar da boa relação com o companheiro, o casamento com o engenheiro chegou ao fim. Antes do término, Esther teve mais duas bonecas negras: Noreen e Jay, de 15 e 12 anos, respectivamente.
Como nunca havia trabalhado no Brasil desde que se casara, e em meio à dificuldade financeira para cuidar das três meninas, Esther, que trançava mato na infância e, anos mais tarde, os cabelos de suas meninas, decidiu enfim fazer o que mais sabia fazer de melhor para ganhar dinheiro.  Com as mãos firmes e “abençoadas”, como enaltecem as clientes, Esther começou a trançar cabelos no centro de São Paulo, na Galeria do Reggae, onde há grande concentração de salões que cuidam de cabelos Afros.
No início dos anos 2000 ainda vivíamos na ditadura da chapinha, em que  ainda não havia o boom do cabelo natural que existe hoje, passados quase quinze anos. Para o cabelo afro ser aceito na sociedade usava-se mão de alisamentos, progressivas ou alongamentos de cabelos, sempre lisos. As tranças eram sim feitas, mas em número menor. Ela não sabe precisar quando exatamente as box braids, como são chamadas as tranças soltas, viraram febre. O que Esther diz é que “uma mulher incentiva a outra”. Assim que ela sempre agiu com suas três meninas, que sempre eram sensação na escola pelos cabelos muito bem trançados em diversos formatos, estilos e comprimentos.
Hellen, a mais velha, conta que a mãe sempre a incentivou a afirmar seus cabelos trançados. Quando algum colega da escola falava que ela e as irmãs “queriam se aparecer” (sic), por força do incentivo e ensinamentos da mãe, as irmãs Uduji resistiam e ostentavam ainda mais suas tranças. As belas adolescentes são a principal vitrine do trabalho da mãe. “Quem não gostaria de ter uma mãe trancista?! É simplesmente maravilhoso!”, diz a mais Noreen, a filha do meio.
Esther cria três mulheres resistentes e cientes de seus papéis enquanto mulheres negras em uma sociedade que ainda caminha rumo à igualdade. Enquanto trança os cabelos das filhas, Esther as empodera e o empoderamento – palavra que dizem estar “na moda” – importa demais e é importante que seja passado às meninas pretas. O efeito é dominó: quanto mais o ato de empoderar é espalhado, mais e mais pessoas serão atingidas. Trançar, para Esther, é uma corrente do bem.
Voltando à época da Galeria, Esther fez o mesmo com suas clientes, que no boca a boca foram divulgando seu trabalho. Com o crescimento da cartela de clientes (algumas que viraram amigas da simpática trancista), Esther decidiu trabalhar por conta, atendendo em casa e não nos salões, onde sempre é mais difícil lucrar e conseguir clientes.
Seu diferencial, além das abençoadas mãos, está na agilidade com que trança, mérito das horas que passava brincando com o mato de casa quando criança e da criatividade de fazer modelos e técnicas novas, além de usar cabelos diferenciados para seus trabalhos.
 Entre as mulheres que trançam nos últimos três anos, há a preferência por um tipo específico de cabelo, importado, chamado Xpression. Trata-se de um tipo de fibra que se assemelha ao cabelo natural pela leveza e textura mais fosca e não “plastificada”, defeito de muitos cabelos Kanekalon mais baratos. Esther, que sempre foi muito criativa e antenada, começou a comprar deste tipo de cabelo e a usar em suas clientes, incentivando, inclusive, comprimentos cada vez maiores de trança, além de diferentes cores e tipos de tranças como o twist (trança de duas pernas) e a trança californiana (em que se começa com uma cor e as pontas são coloridas).  Estamos falando agora em uma época mais recente, cerca de cinco anos atrás, em que, com a ajuda da internet  já se fala muito mais de cabelo afro por meio de sites e principalmente do Youtube. O surgimento de diversos canais de blogueiras negras como Gabi do canal DePretas, Xan Ravelli, Magá Moura, Maraisa Fidelis e Nátali Neri, para citar alguns exemplos, acabou por impulsionar mesmo que indiretamente o trabalho de Esther, justamente pelo efeito dominó que é o empoderamento das mulheres negras. Com a ajuda da internet muitas meninas e mulheres que antes não tinham referencial de beleza, passaram a amar seus cabelos naturais e fazer transição capilar (quando se  abandona o processo de química). As tranças, além de um estilo de vida, também auxiliam essas mulheres em busca de identidade capilar.
Esther, cada dia mais brasileira, sente-se feliz e realizada por poder tocar a educação de suas filhas fazendo tranças. Hellen, Noreen e Jay, por sua vez, seguem a lógica do efeito dominó do empoderamento inspirando amigas e clientes da mãe, já que são sua maior vitrine.
Para além de seu sustento, Esther se orgulha por elevar a autoestima das meninas, mulheres e senhoras que passam quase que diariamente por sua casa, provando ao pé da letra que trançar significa tecer histórias com fios de cabelos.